Motivo para Escrever

Motivo para Escrever
Elida Kronig

     Fui criada pelo medo, sendo constantemente paralisada pelos olhares fulminantes de mamãe.
Em casa, quando sem visitas, podíamos ser crianças e fazer coisas de crianças. Era chegar alguma visita e nosso mundo, meu e de minha irmã, se transformava.

     Havia a regra básica: cumprimentar a visita. Mas não bastava apenas cumprimentá-la, tínhamos que demonstrar o quanto estávamos felizes com aquela visita, ainda que fosse da Dona Elza, uma senhora que se vestia muito esquisita, com seus óculos escuros inseparáveis e uma peruca que, na nossa imaginação, mais parecia um capacete. A amiga de mamãe exalava um cheiro forte e ruim que hoje sei tratar-se de uma péssima mistura de mofo com naftalina. Comíamos as guloseimas que ela nos levava com certa dose de nojo. Sua principal alegria era nos ensinar a comer, e gostar de comer, cabeça de peixe. Ninguém pode nos acusar por nossas reservas quanto a essa senhora.

     De forma geral não podíamos falar nada a não ser que alguém perguntasse alguma coisa. Nesses momentos, deveríamos nos restringir ao "não, muito obrigada" ou ao simples "sim". O sorriso e um leve inclinar da cabeça era obrigatório nos dois casos. A inclinação da cabeça era, portanto, outra de nossas especialidades. Mamãe nos ensinara os momentos certos que deveríamos abaixar levemente a cabeça para frente ou para o lado esquerdo. Até hoje não sei como mamãe conseguia pregar um sermão de infindáveis minutos após testemunhar algum erro de inclinação.

     Ao passarmos para a posição de visitas, as regras tornavam-se maiores e piores. Falar ou se mexer era terminantemente proibido. Chegávamos nas casas, sentávamos de pernas fechadas pondo apenas os pés cruzados, pois cruzar as pernas na altura do joelho era coisa restrita aos adultos somente. As mãos deveriam ficar igualmente cruzadas sobre nosso joelho. As costas deveriam formar uma linha reta até a nuca; encostar confortavelmente no sofá era uma afronta aos ensinamentos que recebíamos. A cabeça ficava inclinada pra frente sem dobrar a nuca.

     Numa determinada época, descobri que escrevendo podia desaguar a criança que eu era. Podia brigar com mamãe sem afrontá-la e sem correr o risco de ter uma colher de pau a carimbar meus glúteos e coxas.

     Fomos crescendo e mamãe foi se tornando maleável. Na adolescência, com os anseios de liberdade invadindo todos os meios e dominando o ar, tivemos uma mãe que era a representação desta época: uma mistura entre a tradição repressora e a liberalidade contemporânea. Estamos entre as raras adolescentes que tiveram educação sexual dada pela família. Tios e primos tiveram uma participação fundamental no processo. Ainda hoje, mamãe superaria com louvores as mães atuais.

     Os tempos evoluíram, o amadurecimento trouxe a compreensão aos atos de mamãe e a vida adulta brinda com saudade e orgulho a educação que recebemos. O gosto por escrever, iniciado nos tempos de infância, continua sendo meu brinquedo, minha arma de guerra, de proteção, de reflexão e superação.


Beijinhos carinhosos
Elida Kronig, a original

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